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A ancestralidade genética dos sambaquieiros: o que revela o DNA de Luzio

31 Agosto 2023

Crânio de Luzio, Museu de Arqueologia e Etnologia da USP

Crânio de Luzio, Museu de Arqueologia e Etnologia da USP. Foto: Cecília Bastos/USP Imagens (CC BY-SA 4.0)

A revolução da arqueogenética no Brasil

Um estudo publicado na revista Nature Ecology & Evolution (artigo original) revelou que Luzio — esqueleto de cerca de 10 mil anos encontrado no Vale do Ribeira (SP) — e outros 34 indivíduos de 11 sítios arqueológicos brasileiros são ancestrais diretos dos povos indígenas atuais. A pesquisa, coordenada por cientistas do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, representa um marco para a arqueogenética Arqueogenética: campo da ciência que estuda o DNA antigo de populações humanas e animais, permitindo reconstruir migrações, origens e relações evolutivas a partir de vestígios arqueológicos. sul-americana.

O que são os sambaquis e quem foi Luzio?

Os sambaquis Sambaqui: sítio arqueológico formado por grandes montes de conchas, ossos e artefatos, construídos por povos pré-históricos do litoral brasileiro entre 8.000 e 1.000 anos atrás. são monumentos arqueológicos formados principalmente por conchas, mas também contendo sepultamentos humanos, artefatos de pedra polida, ossos de peixes e mamíferos, além de vestígios de rituais. Durante cerca de 7 mil anos, grupos sambaquieiros ocuparam quase toda a costa brasileira, construindo essas estruturas como marcos territoriais, moradias, cemitérios e centros cerimoniais. Luzio, por sua vez, é o mais antigo habitante pré-histórico já encontrado no estado de São Paulo, datado de aproximadamente 8000 a.C., e seu esqueleto foi descoberto em 1999 no sítio Capelinha, localizado no município de Ribeira, próximo à divisa de São Paulo com o Paraná. O nome “Luzio” foi dado em referência a Luzia Luzia: nome dado ao fóssil humano mais antigo das Américas, datado de cerca de 11.500 anos, encontrado em Lagoa Santa, Minas Gerais. O nome faz referência à Lucy, o famoso fóssil de hominídeo africano., o famoso esqueleto feminino de Lagoa Santa Lagoa Santa: região de Minas Gerais famosa por seus sítios arqueológicos, onde foram encontrados fósseis humanos antigos, incluindo Luzia, e importantes vestígios da pré-história das Américas., Minas Gerais, considerado o fóssil humano mais antigo da América do Sul, e nomeado em alusão à Lucy Lucy: um dos fósseis de hominídeo mais antigos e famosos do mundo, pertencente à espécie Australopithecus afarensis, descoberta na Etiópia em 1974 e datada de cerca de 3,2 milhões de anos., um dos fósseis de hominídeo mais antigos já descobertos.

O que o DNA revelou?

Apesar de Luzio e outros sambaquieiros apresentarem crânios com formatos diferentes dos indígenas atuais, a análise genética mostrou que eles compartilham uma diversidade compatível com as populações nativas de hoje. Isso enfraquece a hipótese de que os sambaquieiros não teriam deixado descendentes e reforça a ideia de uma única grande migração pré-histórica para a ocupação da costa leste da América do Sul. O estudo também trouxe o primeiro DNA fóssil de populações da Amazônia pré-colonial, ampliando o conhecimento sobre a diversidade genética dos povos originários.

Os sambaquieiros

Embora compartilhassem uma origem comum, as sociedades sambaquieiras do sul e sudeste do Brasil tiveram trajetórias demográficas distintas. No sul, houve intensa interação com povos do interior, falantes de línguas proto-jê Proto-jê: nome dado à língua ancestral dos povos jê, indígenas do Brasil central e meridional, cuja presença remonta a milhares de anos e influenciou diversas culturas pré-históricas do país., resultando em mistura genética com ancestrais dos atuais caingangues e xavantes. No sudeste, a ancestralidade tupi-guarani chegou pouco antes da colonização europeia, evidenciando a complexidade das migrações e contatos culturais. Esse panorama indica que a cultura material sambaquieira foi adotada por populações geneticamente relacionadas, porém distintas, em uma vasta área geográfica e num grande espaço de tempo, chamando a atenção para a complexidade do passado étnico e cultural dos primeiros habitantes do nosso território. O desaparecimento dos sambaquieiros há cerca de 2 mil anos permanece um enigma, mas os dados sugerem que mudanças ambientais e intensificação dos contatos com outros grupos contribuíram para o declínio dos sambaquis.

Arqueogenética

A extração e análise de DNA antigo em regiões tropicais é um desafio devido à degradação do material genético pelo solo ácido e clima úmido. O avanço das técnicas de sequenciamento permitiu recuperar fragmentos de DNA de ossos preservados em sambaquis, especialmente em solos úmidos da Amazônia e do litoral. O Brasil inaugurou em 2023 o primeiro laboratório de arqueogenética da América do Sul, na USP, possibilitando pesquisas pioneiras e formação de novos especialistas.

Paleogenômica global

O estudo dos sambaquieiros se insere em um contexto internacional de avanços na paleogenômica, área que ganhou destaque com o trabalho de Svante Pääbo, laureado com o Nobel de Medicina em 2022 por sequenciar o genoma de neandertais e denisovanos. Assim como Pääbo revolucionou a compreensão da evolução humana na Eurásia, a equipe brasileira contribui para desvendar a história genética das Américas, mostrando que a arqueogenética é fundamental para reconstruir trajetórias migratórias, adaptações e interações culturais.

Sambaquis: complexidade social e legado

Os sambaquis representam um dos fenômenos demográficos mais expressivos da América do Sul, com densidade populacional e complexidade social comparáveis às primeiras civilizações do mundo. A construção de montes com dezenas de metros de altura e centenas de metros de diâmetro revela uma organização social sofisticada, capaz de sustentar grandes populações, desenvolver rituais elaborados e explorar recursos marinhos de forma eficiente. Estudos recentes também mostram que os sambaquieiros tinham dieta diversificada, rica em proteínas de peixes e frutos do mar, e apresentavam patologias associadas à pesca e à vida aquática.

Importância para a história indígena

A pesquisa com DNA antigo é apenas uma peça do quebra-cabeça da pré-história brasileira. Novos estudos, integrando genética, arqueologia, antropologia e linguística, prometem revelar ainda mais sobre a origem, diversidade e adaptações dos povos indígenas. O pioneirismo brasileiro na arqueogenética abre caminho para investigações sobre megafauna, domesticação de plantas e animais, doenças antigas e processos pandêmicos. O reconhecimento de que Luzio e os sambaquieiros são ancestrais dos indígenas atuais reforça a importância de valorizar e proteger o patrimônio arqueológico e a memória dos povos originários do Brasil.

Fontes: Artigo científico na Nature

Jornal da USP: DNA indica que Luzio, esqueleto de 10 mil anos, é antepassado de indígenas atuais

Reprodução de matéria e imagens livre mediante citação das fontes.

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