Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina 2020–2024: Cinco Anos de Revoluções
10 Junho 2025
Escrito por Francisco H. C. FelixNos últimos cinco anos, o Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina reconheceu descobertas que revolucionaram a genética, a biologia molecular e a medicina. Veja abaixo uma tabela-resumo dos laureados, seus países e os principais temas:
Ano | Tema | Laureados | País(es) |
---|---|---|---|
2020 | Descoberta do vírus da Hepatite C | Harvey J. Alter, Michael Houghton, Charles M. Rice | EUA, Reino Unido, Canadá |
2021 | Receptores de temperatura e tato | David Julius, Ardem Patapoutian | EUA, Líbano/EUA |
2022 | Genomas de hominídeos extintos e evolução | Svante Pääbo | Suécia, Alemanha |
2023 | Tecnologia de vacinas de mRNA | Katalin Karikó, Drew Weissman | Hungria/EUA, EUA |
2024 | Descoberta do microRNA e regulação gênica | Victor Ambros, Gary Ruvkun | EUA |
Laureados e Temas
2020: Descoberta do Vírus da Hepatite C
- Laureados: Harvey J. Alter (EUA), Michael Houghton (Reino Unido/Canadá), Charles M. Rice (EUA)
- Tema: Identificação do vírus da hepatite C, permitindo testes sanguíneos e terapias curativas para uma das principais causas de hepatite crônica e câncer de fígado.
Antes dessas descobertas, milhões de pessoas eram infectadas por transfusões de sangue contaminado, sem diagnóstico preciso. O trabalho dos laureados permitiu o desenvolvimento de testes altamente sensíveis, tornando possível eliminar a transmissão do vírus por transfusões e levando ao desenvolvimento de antivirais que hoje curam a hepatite C em mais de 95% dos casos. Antiviral: medicamento utilizado para tratar infecções virais, inibindo o desenvolvimento ou a replicação dos vírus. Antivirais são diferentes de antibióticos, que atuam contra bactérias. O impacto é global, com a Organização Mundial da Saúde estabelecendo a meta de erradicação da hepatite C como problema de saúde pública. Gene (gr gonos = geração, semente): trecho de DNA que codifica uma molécula (proteína) com uma função. Correspondem às unidades de herança hipotetizadas por Mendel e denominadas de genes pelo botânico dinamarquês Johannsen em 1905. Constitui uma minoria do DNA de uma célula. A maior parte do DNA não codifica proteínas e, portanto, não faz parte de genes. A expressão “um gene, uma proteína” resume o dogma central da biologia, de que a informação genética é transferida (codificada) do DNA para o RNA e deste para uma proteína Organização Mundial da Saúde (OMS): agência especializada das Nações Unidas responsável pela saúde pública internacional. Fundada em 1948, a OMS coordena respostas globais, define padrões e fornece orientações sobre saúde, prevenção e controle de doenças.
Harvey J. Alter. Fonte: Wikipedia
Michael Houghton. Fonte: Wikipedia
Charles M. Rice. Fonte: Wikipedia
2021: Receptores de Temperatura e Tato
- Laureados: David Julius (EUA), Ardem Patapoutian (Líbano/EUA)
- Tema: Descoberta de como o corpo sente temperatura e estímulos mecânicos, através dos receptores TRP e Piezo.
Julius utilizou a capsaicina (composto da pimenta) para identificar o receptor TRPV1, responsável pela sensação de calor. Patapoutian identificou os receptores Piezo1 e Piezo2, essenciais para a sensação de toque e pressão. Essas descobertas abriram novas áreas na neurociência sensorial, com impacto direto no desenvolvimento de analgésicos e tratamentos para dor crônica, além de explicar doenças genéticas raras ligadas à propriocepção. Dor: experiência sensorial e emocional desagradável associada a dano real ou potencial aos tecidos. Pode ser aguda (curta duração) ou crônica (longa duração), sendo um dos principais focos de pesquisa e tratamento em medicina. Julius e Patapoutian também colaboraram e publicaram juntos em alguns momentos, mostrando a interconexão da comunidade científica. Receptor: molécula (geralmente uma proteína) presente na superfície ou interior das células, responsável por receber e responder a sinais químicos do ambiente. Receptores são essenciais para a comunicação entre células e para a resposta do organismo a hormônios, neurotransmissores e outros sinais.
David Julius. Fonte: Wikipedia
Ardem Patapoutian. Fonte: Wikipedia
2022: Genomas de Hominídeos Extintos e Evolução Humana
- Laureado: Svante Pääbo (Suécia/Alemanha)
- Tema: Sequenciamento do genoma neandertal e descoberta dos denisovanos, revelando cruzamentos com Homo sapiens e transformando a compreensão da evolução humana.
Pääbo fundou a paleogenômica, superando desafios técnicos para extrair e sequenciar DNA antigo. Sua equipe mostrou que humanos modernos herdaram genes de neandertais e denisovanos, influenciando imunidade, metabolismo e até resposta a doenças como COVID-19. Sistema imunológico: rede complexa de células, tecidos e órgãos que defende o organismo contra infecções e doenças. Reconhece e neutraliza patógenos como bactérias, vírus e outras substâncias estranhas. Por exemplo, variantes de genes neandertais afetam a coagulação do sangue e a sensibilidade à dor, enquanto um gene herdado dos denisovanos aumenta a resistência à altitude em populações do Himalaia. O trabalho de Pääbo inspirou colaborações multidisciplinares entre genética, arqueologia e antropologia, e seu filho, Hugo Zeberg, também atua na área, mostrando continuidade familiar na pesquisa. Genoma: material genético de um organismo. Inclui todos os genes, as sequências de DNA não codificante (que não são genes) e também o material genético em organelas como as mitocôndrias. Por exemplo, os 22 mil genes humanos constituem menos de 2% do genoma humano.
Svante Pääbo. Fonte: Wikipedia
2023: Tecnologia de Vacinas de mRNA
- Laureados: Katalin Karikó (Hungria/EUA), Drew Weissman (EUA)
- Tema: Descobertas que permitiram o desenvolvimento das vacinas de mRNA, fundamentais no combate à COVID-19 e abrindo novas possibilidades para vacinas e terapias.
Karikó e Weissman enfrentaram anos de descrédito e falta de financiamento, mas sua persistência levou à modificação do mRNA para evitar resposta inflamatória, tornando possível o uso clínico. A tecnologia foi rapidamente aplicada nas vacinas contra COVID-19, batendo recorde de velocidade no desenvolvimento de uma vacina eficaz e salvando milhões de vidas. Hoje, a plataforma de mRNA está sendo testada para vacinas contra câncer, HIV e doenças autoimunes. Karikó e Weissman colaboraram diretamente, e suas trajetórias inspiram cientistas sobre a importância da resiliência e da colaboração internacional. mRNA (RNA mensageiro): tipo de RNA que carrega a informação genética do DNA até a maquinaria celular responsável pela produção de proteínas (ribossomos). O mRNA serve como molde para a síntese de proteínas, desempenhando papel central na expressão gênica.
Katalin Karikó. Fonte: Wikipedia
Drew Weissman. Fonte: Wikipedia
2024: Descoberta do microRNA e Regulação Gênica
- Laureados: Victor Ambros (EUA), Gary Ruvkun (EUA)
- Tema: Descoberta dos microRNAs, pequenas moléculas de RNA que regulam a expressão gênica, com impacto profundo no desenvolvimento, doenças e terapias.
Ambros e Ruvkun, que trabalharam em paralelo e também colaboraram, mostraram que pequenos RNAs não codificantes controlam a expressão de genes em animais e humanos. O campo do microRNA explodiu, revelando seu papel em câncer, doenças cardíacas, neurodegenerativas e imunidade. A primeira terapia de interferência de RNA aprovada para uso clínico (patisiran, para amiloidose hereditária) é um exemplo direto do impacto dessas descobertas. Terapias baseadas em microRNA já estão em testes clínicos, e a descoberta mudou a visão sobre o chamado “DNA lixo”. Ambos os laureados têm histórico de colaboração com outros ganhadores do Nobel, como Robert Horvitz. DNA (ou ADN = ácido desoxiribonucléico): molécula orgânica complexa, o DNA é um polímero, uma cadeia formada da união de moléculas mais simples. Ele é formado de 4 tipos de moléculas: adenina, citosina, guanina e timina, as quais são nucleotídeos, os monômeros (partes individuais que compõem, em conjunto, um polímero) do DNA. Cada molécula de DNA é formada pela união de duas longas fitas de nucleotídeos, que se enrolam em espiral. A posição dos nucleotídeos ao longo da fita de DNA não é casual, ela forma um código, chamado de código genético, que armazena as informações necessárias para a produção de todas as proteínas de uma célula. Na verdade, o DNA contido em cada célula carrega as informações necessárias para reproduzir todo o organismo.
Victor Ambros. Fonte: Wikipedia
Gary Ruvkun. Fonte: Wikipedia
O que une os temas e os laureados?
- Foco molecular e genético: Todos os prêmios destacam avanços em biologia molecular, genética e mecanismos fundamentais da saúde e doença.
- Impacto translacional: Cada descoberta levou a novos diagnósticos, terapias ou mudanças fundamentais na ciência biomédica.
- Colaboração internacional: Muitos laureados trabalharam em diferentes países e instituições, refletindo a natureza global da ciência atual.
- Diversidade de trajetórias: Há imigrantes e trajetórias multiculturais (ex: Karikó da Hungria, Patapoutian do Líbano).
- Cientistas ativos: Em junho de 2025, todos os laureados estão vivos e a maioria segue ativa na pesquisa ou na academia, exceto Michael Houghton, que se aposentou, mas está vivo.
- Interrelações: Vários laureados colaboraram entre si ou com outros ganhadores do Nobel, mostrando a importância das redes científicas.
Controvérsias e Curiosidades
- 2020: Houve debate sobre a exclusão de outros colaboradores na pesquisa da hepatite C, mas os principais descobridores foram reconhecidos.
- 2021: Sem grandes controvérsias; as descobertas foram amplamente aceitas e celebradas.
- 2022: Discussão sobre o foco em DNA antigo, mas o pioneirismo de Pääbo foi universalmente reconhecido.
- 2023: O desenvolvimento rápido das vacinas de mRNA gerou debates públicos, mas o feito científico foi claro. A longa luta de Karikó por reconhecimento antes do Nobel foi muito comentada.
- 2024: O campo do microRNA é vasto e outros cientistas contribuíram, mas Ambros e Ruvkun fizeram as descobertas fundamentais.
Implicações para o Presente e o Futuro
As tecnologias e descobertas premiadas já têm impacto profundo no presente:
- Hepatite C: A doença está próxima de ser erradicada em vários países graças a testes e tratamentos derivados das descobertas de 2020.
- Saiba mais: OMS - Hepatite C
- Vacinas de mRNA: A plataforma de mRNA está sendo adaptada para vacinas contra câncer, HIV, gripe e doenças autoimunes, com ensaios clínicos em andamento. O recorde de velocidade no desenvolvimento da vacina contra COVID-19 mostrou o potencial dessa tecnologia.
- Nature - mRNA vaccines
- MicroRNA e RNAi: A primeira terapia de interferência de RNA aprovada para uso clínico foi o patisiran (Onpattro), para amiloidose hereditária por transtirretina, em 2018. Desde então, já existem seis terapias de interferência de RNA aprovadas pelo FDA, ampliando as possibilidades de tratamento para doenças genéticas e crônicas e podendo revolucionar a medicina personalizada.
- FDA - RNAi therapies
- Nature Reviews Drug Discovery - RNAi
- Genética evolutiva: Genes herdados de neandertais, como o F5 (coagulação), SCN9A (sensibilidade à dor) e variantes do cluster OAS (imunidade antiviral), afetam características humanas atuais. Um gene de denisovanos, EPAS1, aumenta a resistência à altitude em tibetanos. Esses achados ajudam a entender susceptibilidade a doenças e adaptações humanas.
- Nature - Neanderthal DNA and COVID-19
- Science - Denisovan gene and altitude Neurociência sensorial: Novos analgésicos e tratamentos para dor crônica e doenças neurológicas estão sendo desenvolvidos com base nos receptores descobertos em 2021.
- Science - Pain research
No futuro, espera-se que essas descobertas continuem a transformar a medicina, tornando diagnósticos mais precisos, tratamentos mais personalizados e ampliando a compreensão dos mecanismos fundamentais da vida. O intercâmbio internacional, a colaboração multidisciplinar e a valorização da ciência básica mostraram ser essenciais para avanços que beneficiam toda a humanidade.
Conclusão
Os últimos cinco anos do Nobel de Medicina refletem uma era dourada da biologia molecular e genética, com descobertas de impacto imediato na saúde humana e que aprofundam nossa compreensão da vida. A pesquisa científica é fundamental para o bem-estar das pessoas e para o avanço da sociedade. No entanto, o crescimento do negacionismo científico e da desinformação preocupa, pois ameaça conquistas históricas e dificulta o acesso a tratamentos e vacinas. Por isso, é essencial valorizar e divulgar informação de qualidade, baseada em evidências, para que os benefícios da ciência cheguem a todos e para que a sociedade possa tomar decisões informadas sobre saúde e políticas públicas.