Medicina quântica: a farsa

14 Agosto 2017

Escrito por Francisco H. C. Felix

Que me perdoem os crédulos, mas um mínimo de bom senso é fundamental. Para começo de conversa, declaro logo que não defenderei nenhum conceito que use a palavra “quântico(a)” diferente da física. Então, se você é uma pessoa que “acredita” em qualquer coisa quântica, pode ignorar essa postagem. Porém, se você não tem “opinião” formada sobre o assunto ou apenas é curioso e quer alguma informação coerente, pode continuar, prometo que não se decepcionará.

Vamos começar com uma separação importante: a diferença entre uma observação e uma opinião. Algumas pessoas declaram que “ciência não é opinião” ou “ninguém pode escolher se acredita ou não em ciência” e eu confesso que, dito dessa forma, parecem afirmações bastante autoritárias. Mas é bastante fácil clarificar esse e outros mal-entendidos se simplificarmos a questão entre dois conceitos bem (aparentemente) óbvios: observação e opinião, e a diferença entre eles. Nos dois conceitos, temos um denominador comum: o sujeito. Alguém observa, alguém opina. Também temos, nas duas situações, um outro elemento comum: um objeto. Alguém observa algo, alguém opina sobre algo.

Para entender a diferença entre observar e opinar, imaginemos a seguinte situação: você está diante de um rio e vê, ao longo de um dia, algumas pessoas tentarem atravessá-lo. Cinco viajantes tentam, quatro falham e apenas um consegue. Um dos infortunados que não conseguiu acabou se afogando. Então, o sexto viajante chega e vê você, parado ali. Imaginando que você saberia algo sobre aquele rio, ele pergunta: “esse rio é seguro?” Diante do que você observou, a resposta óbvia é apenas uma: “não”. Se você acreditar em destino ou não, se tiver vontade de defender o livre arbítrio ou não, se tiver medo de espíritos ou não, nenhuma de suas crenças muda o que você observou. Não, o rio não é seguro, baseando-se no fato de que apenas 1 em cada 5 pessoas conseguiu atravessá-lo e, ainda por cima, uma acabou morrendo ao tentar. Não é sua opinião no sentido que não depende daquilo em que você acredita (a não ser que você acredite que suas observações podem ser falsas).

Um outro viajante, o sétimo, chega e vê você e o sexto viajante conversando. Ele chega perto e pergunta: “devo atravessar o rio?” Antes que você fale, o sexto viajante responde: “esse homem acredita que você não deve, mas eu sou da opinião contrária”. O sétimo viajante, então, entende que existem duas opiniões divergentes e que ele deve escolher entre elas. Como ele não costuma recuar diante de adversidades, ele prefere escutar a opinião do sexto viajante. Então afoga-se ao tentar atravessar o rio.

O sexto viajante deu uma opinião sobre o que o outro homem deveria fazer. Acontece que não foi uma opinião baseada em observação, sabe-se lá no que foi baseada. O sétimo viajante, na verdade, confundiu aquela situação. Ele pediu uma opinião, um julgamento, sobre a ação que ele pretendia realizar. Ele não perguntou sobre observações. Ele recebeu uma resposta que refletiu sua pergunta, uma pergunta que mostrou-se errada por tê-lo induzido a perecer no rio. As pessoas repetidamente cometem este tipo de erro. Ao invés de inquirir “o que é isso?” ou “o que você viu?” para outras pessoas, acabam perguntando “o que você faria?” ou, pior ainda, “o que você acha que eu devo fazer?”.

Isso parte apenas do despreparo das pessoas em pensar por si mesmas, ou em outras palavras, em desenvolver um raciocínio crítico. A maioria das pessoas não tem uma noção exata de como (nem porque) fazer isso apenas por desconhecimento. Desconhecem os elementos básicos do raciocínio e como utilizá-los para compreender o mundo e seus fenômenos ou, em outras palavras, não tem noção de lógica. Assim, confundem a utilização de informação com a discussão de idéias. Uma pessoa que tenha o hábito de desenvolver raciocínio crítico, ou seja, que usa a lógica para avaliar a informação e as idéias, não cometeria um erro desses tão facilmente.

Um oitavo viajante chega no local e já vai perguntando: “quem de vocês conhece este rio?” O sexto viajante dá de ombros, mas você pode responder: “eu passei boa parte do dia aqui e vi várias pessoas tentanto atravessá-lo. A travessia é difícil e dois já se afogaram.” Agradecido, o oitavo viajante desiste de tentar passar o rio ali naquele local e parte para procurar um local onde a travessia seja mais fácil. Ele não perguntou a opinião de ninguém sobre o rio. Ele quis se inteirar das observações sobre o curso de água. Isso evitou que ele talvez se afogasse naquele dia.

Em resumo, como a ciência é um método de observar o mundo, ela acumula informações, conhecimento. Nada no método científico indica que o conhecimento adquirido com a ajuda dele possa ser definitivo. Na verdade, faz parte do método buscar as lacunas do conhecimento, onde as observações prévias não explicam os novos fenômenos, para assim acumular mais e mais informação. O método científico não envolve, todavia, a discussão sobre o que fazer com o conhecimento. O método científico é uma maneira de descrever observações, mas não de interpretá-las. A interpretação do conhecimento constitui um outro nível de discussão, onde opiniões são importantes.

Dessa forma, quando se diz que ninguém pode ter uma opinião sobre a ciência, na verdade leia-se que é ilógico tecer opiniões sobre observações realizadas com o método científico. Todavia, torna-se perfeitamente lógico discutir opiniões sobre o que fazer com o conhecimento. Por exemplo, os moradores da vizinhança do rio poderiam discutir a importância de construir uma ponte para permitir a travessia com segurança. Seria uma atitude lógica e produtiva. Evitaria perdas de vidas.

Se um místico, porém, chegasse ensinando que os cientistas são materialistas autoritários e que bastava o pensamento positivo para que o universo conspirasse para as pessoas caminharem sobre a água, isso provavelmente levaria a um aumento recorde de afogamentos. A realidade não muda com as opiniões. O que nós fazemos com a realidade que temos muda.

Compreendendo isto, podemos falar sobre a Física quântica. Ela é uma teoria científica, ou seja, uma forma de organizar o conhecimento científico adquirido através de observações e fazer previsões sobre o que talvez encontremos no futuro. Teorias científicas envolvem o uso de conhecimento científico para fazer previsões testáveis. Essas previsões vão confirmar a teoria ou não. Neste último caso, refutando-se parte ou toda uma teoria, esta teoria deve ser atualizada, adaptada às observações. A partir daí, com a nova teoria atualizada, mais previsões são feitas. E assim repete-se o ciclo. As teorias científicas fazem parte do método científico. São ferramentas para acumular cada vez mais conhecimento.

É possível que existam opiniões divergentes sobre uma teoria científica, mas apenas enquanto as observações não são realizadas para testar a teoria. Se as observações comprovam uma opinião (uma parte da teoria) muito bem, ela mantém-se. As outras opiniões são abandonadas. No século XVI, Johannes Kepler questionava-se sobre o formato das órbitas dos planetas. Em sua opinião, a forma circular era mais perfeita e elegante e deveria ser a real. No entanto, suas observações nunca comprovaram sua opinião (teoria) e ele foi forçado a rever suas idéias.

Admitindo que as observações só poderiam ser explicadas por órbitas planetárias elípticas, ele criou as leis que descrevem o movimento planetário. A opinião de Kepler não venceu a observação, pois uma opinião não muda a realidade. Nós é que temos que nos adaptar à realidade, não o contrário.

As teorias científicas usam muito a linguagem matemática para expressar suas inferências. Na física, uma área essencialmente quantitativa (na qual lida-se com fenômenos que são medidos) e em outras áreas igualmente ou parcialmente quantitativas, o uso da matemática é essencial para a elaboração de teorias. As fórmulas matemáticas mostram como diversos fenômenos se comportam e se relacionam entre si. Um exemplo é a segunda lei de Newton, a qual pode ser expressa na célebre fórmula F = ma. Essa fórmula mostra como uma força aplicada a um corpo qualquer se relaciona com a massa desse corpo e com o movimento dele.

Nessa fórmula, não interessa a composição do corpo, mas apenas a grandeza massa. No entanto, a fórmula não tem nada a dizer sobre a natureza da massa ou porque os corpos têm massa. Na verdade, faz bem pouco tempo que a física comprovou com experimentos a teoria mais aceita sobre porque existem objetos com massa em nossa realidade (por acaso, a teoria quântica). Uma coisa interessante sobre a natureza matemática da segunda lei de Newton é que uma pessoa que não entenda nada de matemática e nem domine seus conceitos básicos como força ou aceleração jamais vai realmente entendê-la.

É possível explicar a segunda lei de Newton sem recorrer à matemática, usando analogias ou imagens aproximadas. Mas nunca vai ser a mesma coisa de alguém que domina a matemática básica e sabe fazer regra de três, a única coisa necessária para resolver aqueles exercícios chatos sobre dinâmica do colégio. Para a maioria de nós, F = ma é banal e corriqueira, pois entendemos sua matemática, a qual é simples para nossa compreensão. Sabemos, também, que é apenas uma equação baseada em observações e que não tem nada a ver com a natureza da realidade. Isso não impediria uma pessoa qualquer de, por exemplo, criar o “culto à Santa Força”, onde seríamos ensinados como a Força mística cria a realidade.

Dá para contar qualquer história sem muito nexo com a realidade com qualquer equação da física, por mais simples. É só encontrar uma audiência, um público que não entende do que você está falando e que vai engolir tudo o que for dito sem discutir nada. É dessa forma que funcionam os charlatanismos “quânticos”.

A física quântica é um modelo que explica o comportamento das partículas que compõem a matéria e as interações entre elas. Este modelo baseia-se nas observações de inúmeros pesquisadores e nas idéias criativas de alguns deles. Estas idéias são expressas em forma de equações. Várias equações foram calculadas na física quântica, cada uma descrevendo um certo conjunto de fenômenos. Uma das equações mais conhecidas é a Equação de Schrödinger: Ĥψ = Eψ. Essa, na verdade, é uma simplificação dela. Essa equação indica como calcular o estado de sistemas que se comportam de forma quântica. Como eu não domino a matemática da física quântica, não tenho como explicar realmente como utilizá-la.

A física quântica, como teoria científica, é considerada a mais bem sucedida da história da física. O que isso quer dizer? Que as predições feitas com suas equações atingem o maior grau de precisão jamais obtida com uma teoria física. Essa é uma abordagem quantitativa de entender o quão apropriada é a física quântica para descrever fenômenos. Quando um leigo como eu tenta alcançar o que isso quer dizer, todavia, a coisa se complica. Como eu não domino a matemática, minha única escolha é utilizar metáforas e imagens aproximadas.

Dessa limitação vêm os principais mitos sobre a física quântica. O mais comum, o de que ela é contra-intuitiva e, assim, deve descrever um “nível mais profundo” da realidade. Esse mito vem do fato de que leigos como eu ou você não entendem bem os conceitos que a teoria usa ou os fenômenos que ela explica. Fundamentalmente, a física quântica explica fenômenos no domínio das partículas fundamentais da matéria. Um dos erros mais comuns é “entender” a física quântica como “rompendo” a visão de que as partículas têm uma existência física observável. Um dos exemplos mais citados é o de que a física quântica descreve as partes mais fundamentais da matéria como sendo, ao mesmo tempo, ondas e partículas.

Nós leigos, na verdade, é que vemos as partículas como objetos macroscópicos miniaturizados, como “bolinhas” num imenso jogo de bilhar fundamental. Para ser exato, nem mesmo na física clássica as partículas fundamentais são interpretadas assim. As partículas fundamentais, para os físicos, são objetos que interagem entre si de acordo com leis matemáticas previsíveis. Implicitamente, as partículas eram vistas como objetos unidimensionais, como pontos sem extensão. Antes da física quântica, as equações nada falavam sobre sua natureza. A partir da física quântica, entende-se as partículas como a manifestação de um “campo de energia” (que novamente é uma analogia para leigos, imperfeita).

O comportamento destes “campos de energia” é descrito por equações matemáticas cujos resultados são probabilísticos, ou seja, referem-se a uma probabilidade de ocorrer fenômenos. Um parêntese: quando falo de “campos de energia”, não me refiro a qualquer noção exdrúxula, não é “energia vital”, “energon”, “all spark”, “speed force”, “energia vibracional”, ou qualquer coisa que se imaginar. Na verdade, a própria palavra “energia” não é realmente adequada, pois estes campos descrevem as interações fundamentais da matéria (como o eletromagnetismo e a gravidade) e não exatamente “energias”. A noção importante é que a matemática da física quântica dá resultados em forma de probabilidades, não sendo determinística. Daí a achar que essas equações, criadas para descrever fenômenos do domínio subatômico, têm a ver com a “natureza fundamental da realidade” é um salto que a maioria dos físicos não endossa.

A idéia da dualidade onda-partícula tem origem na natureza probabilística da matemática da física quântica. A partir dessa matemática, pode-se calcular uma “probabilidade” de se observar uma partícula, ou dessa partícula interagir com outra, e essa probabilidade é descrita graficamente como uma função de onda. Leigos acabam entendendo essa dualidade, que é um conceito matemático abstrato, como se as partículas pudessem ser, ao mesmo tempo, “bolinhas” e “ondulações” (como aquelas da superfície da água). Essas imagens são analogias usadas para facilitar a comunicação com quem não entende a matemática, como eu ou você. Isso não quer dizer que correspondam à “natureza fundamental da realidade”.

Idéias como entrelaçamento quântico, princípio da incerteza e outras são igualmente mal interpretadas para dar origem a conceitos que não podem de forma alguma ser abstraídos da física quântica. É o mau uso das noções da física quântica, que vem do fato de pouca gente ter uma compreensão profunda sobre ela, que está na origem de tantos mal entendidos.

Igualmente, usar conceitos supostamente vindos da física quântica (na sua maioria, metáforas usadas para facilitar o entendimento de leigos) aplicando-os à fenômenos que nada têm a ver nem mesmo com a física é, na melhor das hipóteses, pura má fé. É o caso, por exemplo, da chamada medicina quântica. Supostamente, ela aplicaria as “idéias quânticas” (que não são idéias, são figuras de linguagem, nem tem nada a ver com a física quântica, que é matemática) no domínio da saúde.

A física que descreve objetos no domínio que nossos sentidos conseguem apreender, o domínio macroscópico, é essencialmente uma física clássica, que não tem nada a ver com a física quântica. Não faz sentido tentar aplicar as equações da física quântica, por exemplo, a uma cadeira ou a minha cabeça. Ou as vasos sanguíneos no seu braço, ou seus neurônios. Esses são objetos macroscópicos que podem ser descritos pela física clássica, mas não pela física das partículas fundamentais. É tão errado acreditar que o entrelaçamento quântico possa ocorrer entre duas pessoas quanto achar que eu posso empilhar grãos de areia em cima uns dos outros até formar uma coluna da espessura de um grão e da altura de um prédio.

Qualquer pessoa pode entender que uma pilha de tijolos e uma pilha de grãos de areia se comportam de maneiras bem diferentes. Não deveria haver tanta dificuldade assim em entender que o comportamento de elétrons não pode ter muito a ver com o funcionamento do nosso estômago ou de nosso sistema imunológico. Mas, como se tratam de fenômenos fora da nossa experiência cotidiana sobre os quais compreendemos pouco, não temos como julgar alegações de que a nossa saúde possa ser “quântica”.

Não é preciso esmiuçar as alegativas de quem quer que sejam os defensores da “medicina quântica” ou “cura quântica”. Acreditar que leis que regem o comportamento de prótons e nêutrons e forças como o eletromagnetismo possam ser aplicadas ao mecanismo da saúde e da doença em nossos organismos é, no mínimo, erro grosseiro. Na maioria dos casos, trata-se também de exploração da boa fé e da falta de entendimento das pessoas. Medicina quântica é simplesmente uma farsa. Não caia nessa.

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