Possível efeito de drogas cardiovasculares na sobrevida de pacientes com glioblastoma

4 Maio 2018

Escrito por Francisco H. C. Felix

No último número do Journal of Neuro-Oncology, uma revisão e um estudo retrospectivo Estudos retrospectivos: ou estudos observacionais, analisam dados de pacientes tratados ou seguidos previamente e anotados em prontuários. Como o estudo é planejado e realizado após o procedimento analisado, não há chance de modificar os parâmetros envolvidos, logo, não se pode controlar fatores que podem alterar ou confundir os resultados. Assim, ao contrário de ensaios clínicos (planejados antes de um procedimento, neste caso chamado de intervenção), os estudos observacionais não podem ser conclusivos, e são considerados exploratórios (geram novos conhecimentos que são usados para criar teorias e planejar ensaios). investigam a possibilidade de drogas comumente usadas para tratar doenças cardiovasculares terem efeito na sobrevida Análise de sobrevivência ou de sobrevida é um ramo da estatística que analisa a duração de tempo até que um ou mais eventos aconteçam, como morte ou falha de um tratamento. A análise de sobrevivência tenta responder a perguntas como: qual é a proporção de uma população que sobreviverá após um certo tempo? Como circunstâncias particulares aumentam ou diminuem a probabilidade de sobrevivência? Assim, a definição de sobrevida é importante. Na oncologia, em geral fala-se na sobrevida a partir do diagnóstico de uma doença (ou a partir do início de um tratamento). de pacientes com gliomas Glioma é um tumor de células gliais, células que protegem, nutrem e dão suporte aos neurônios, podendo ocorrer no encéfalo, na medula espinhal ou mesmo junto a nervos periféricos. São responsáveis por aproximadamente 30% de todos os tumores do sistema nervoso central e por 80% dos tumores malignos primários no cérebro. Podem ser classificados em gliomas de baixo grau (de comportamento geralmente benigno) ou gliomas de alto grau (malignos). Em crianças e adolescentes, ao contrário de adultos, gliomas malignos são menos comuns. , especialmente o glioblastoma Glioblastoma (GBM), anteriormente conhecido como glioblastoma multiforme, é o tipo mais comum e agressivo de tumor maligno cerebral que acomete os seres humanos. Em crianças e adolescentes, o GBM é incomum, e os tumores cerebrais malignos mais frequentes são meduloblastomas. Além disso, a biologia molecular dos GBM pediátricos é diferente e seu tratamento não é o mesmo que em adultos. .

Pesquisadores do Instituto Nacional do Câncer do México, da Universidade Nacional Autônoma do México, da NYU School of Medicine, da Johns Hopkins School of Medicine e da Mayo Clinic Campus Florida se uniram para vasculhar a literatura científica atrás de informações sobre o papel do sistema renina-angiotensina na biologia e tratamento dos gliomas.

O sistema renina-angiotensina (SRA) é o alvo de várias classes de medicamentos cardiovasculares, como os inibidores de ECA (iECA) e os antagonistas de receptores de angiotensina (ARA), as duas classes de drogas mais usadas no tratamento da hipertensão e doenças cardíacas no mundo. Drogas que agem no SRA têm sido investigadas nos últimos anos como candidatas ao reposicionamento na oncologia, ou seja, sua utilização em outras indicações que não têm a ver com seu uso clássico.

Receptores de angiotensina, os mesmos que são alvo dos ARA, podem ser encontrados em gliomas, os tumores cerebrais mais frequentes. Vários estudos in vitro e in vivo (em animais) mostraram que os ARA e os iECA poderiam ter um efeito inibidor do crescimento de células tumorais. Em 2015, um estudo retrospectivo publicado por um grupo francês mostrou um efeito positivo na sobrevida e qualidade de vida de pacientes com glioblastoma (GBM) tratados com ARA/iECA. O número de pacientes incluídos foi relativamente pequeno (81) e o efeito observado teve significância estatística limítrofe (p = 0,04).

Outros estudos mostraram que ARA podem reduzir a necessidade de esteróides para o tratamento de edema cerebral relacionado aos GBM e outro estudo retrospectivo mostrou aumento da sobrevida dos pacientes com GBM recorrentes tratados com bevacizumabe e ARA/iECA. Este último estudo incluiu um grupo maior de pacientes (181), porém também mostrou um efeito com significância estatística limítrofe (p = 0,032).

Outros aspectos do SRA que podem fazer com que o uso de ARA/iECA tenham impacto no tratamento de gliomas incluem imunomodulação, radiossensibilização das células tumorais e radioproteção das células normais.

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No mesmo número do JNO, foi publicado um estudo retrospectivo que contrabalança e complementa esta revisão da literatura sobre este tema, dando mais uma perspectiva sobre o assunto. Pesquisadores do European Organisation for Research and Treatment of Cancer (EORTC), incluindo centros de pesquisa da Europa e América do Norte, conduziram uma avaliação retrospectiva do efeito de várias classes de drogas cardiovasculares na sobrevida de pacientes com GBM.

O estudo incluiu 810 pacientes com GBM que haviam sido recrutados para dois grandes ensaios clínicos. Os pesquisadores avaliaram a sobrevida global e a sobrevida livre de progressão. Os pacientes foram subdivididos de acordo com o uso de três classes de drogas: iECA, ARA e estatinas.

Os resultados mostraram sem ambiguidade que nenhuma destas classes de medicamentos teve influência na sobrevida dos pacientes com GBM. Este estudo reuniu um número bem maior de pacientes em comparação com os outros citados. Além disso, tem a vantagem de ser uma análise secundária de um grupo homogêneo de pacientes recrutados prospectivamente.

Figura: esquema do sistema renina-angiotensina-aldosterona. Créditos A. Rad [GFDL (http://www.gnu.org/copyleft/fdl.html) or CC-BY-SA-3.0, from Wikimedia Commons

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O caso do reposicionamento de drogas cardiovasculares no tratamento do GBM constitui um exemplo das virtudes e fraquezas dos estudos retrospectivos. Não é incomum que estudos assim desenhados sugiram efeitos aue nunca são confirmados em ensaios prospectivos. A principal razão é o conjunto de variáveis de confundimento.

Em estudos observacionais retrospectivos estas não podem ser controladas e são frequentemente desconhecidas. Já em estudos prospectivos, todas as variáveis de confundimento reconhecidas podem ser levadas em conta num planejamento prévio. Estudos secundários de dados coletados prospectivamente são um exemplo de um tipo de estudo retrospectivo que suplanta parcialmente estas limitações.

Mesmo com todo o cuidado metodológico, um estudo retrospectivo via de regra não pode ser usado para concluir pela real efetividade de um tratamento, mas sim construir hipóteses sólidas a fim de permitir o planejamento de estudos prospectivos bem desenhados. No caso dos ARA/iECA, a principal conclusão que se chega é que não parece valer a pena o esforço de continuar investindo em seu reposicionamento como medicamentos oncológicos.

Esta postagem não representa sugestão de tratamento. Apenas um especialista pode judiciosamente decidir quais informações divulgadas podem modificar de alguma forma um esquema de tratamento, e de que forma.

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