O que é o câncer

1 Março 2017

Escrito por Francisco H. C. Felix

Sidharta Mukerjee, médico e escritor, chamou o câncer Câncer (lat cancer = caranguejo): grande grupo de doenças muito diferentes entre si, tendo em comum a proliferação celular incessante e desordenada, a capacidade de invadir localmente tecidos saudáveis do organismo e a capacidade de se espalhar para locais distantes (metástases). Os diversos tipos de câncer são teoricamente oriundos de uma única célula (origem clonal) a qual sofreu mutações em seu código genético. Saiba mais aqui. de “o imperador de todas as moléstias”, em seu livro best-seller. Se as doenças tivessem sua importância medida em mortes, todavia, sem dúvida a tuberculose seria seu imperador, tendo sido responsável por mais de um bilhão de mortes ao longo da história humana. Hoje em dia, no entanto, com o controle cada vez maior das doenças infecciosas e cardiovasculares, o câncer desponta como o responsável pelo maior número de mortes humanas. Em 2012, mais de 8 milhões de pessoas morreram de câncer no planeta.

Mas o que é o câncer? Chamado assim pelos anatomistas da antiguidade devido ao aspecto das lesões que se entranham na carne, formando, na visão deles, “dedos” ou “patas” que invadiam profundamente os tecidos em volta, o câncer, para começar, não é uma doença única.

Existem centenas de tipos e subtipos diferentes de câncer. Até os anos 90, a diferenciação entre eles era feita principalmente pelo local onde eles surgiam e o tipo de célula que lhes dava origem. Ou, em termos técnicos, ao seu aspecto anatomopatológico. Desde o fim do Projeto Genoma Humano Projeto Genoma Humano (PGH): consórcio internacional que chegou a envolver mais de 5000 pesquisadores de 50 países, reunidos com o intuito de sequenciar todo o genoma (conjunto de genes) humano. O projeto, planejado desde os anos 80, iniciou em 1990, sob a direção de James D. Watson (um dos descobridores da estrutura do DNA) como um programa do Department of Energy (DOE) e National Institutes of Health (NIH) americanos, prevendo que levaria 15 anos e gastaria 3 bilhões de dólares para sequenciar cerca de 100 mil genes. Em 2003, num comunicado de imprensa conjunto, foi anunciada a conclusão oficial do projeto, o qual sequenciou 99% do genoma humano com uma precisão de 99,99%, encontrando cerca de 22300 genes, muito menos do que o esperado inicialmente. , em 2003, no entanto, as alterações genéticas por trás dos diversos tipos de câncer tem sido mapeadas em detalhe cada vez maior. O Projeto Genoma do Câncer já mapeou as principais anormalidades genéticas dos tipos mais frequentes de câncer. Isso abriu a possibilidade para a classificação molecular.

Quando estudante, eu aprendi que o câncer é uma doença celular, mas essa definição foi modificada pelos novos conhecimentos. Como mais alguém disse recentemente, nos últimos 10 anos, nós aprendemos mais sobre o câncer do que nos 1000 anos anteriores. Então, podemos atualizar a definição para o câncer é uma doença molecular.

Todos nós somos formados por células Célula (lat cellula = quarto pequeno): unidade estrutural e funcional dos organismos vivos. O cientista inglês Robert Hooke descreveu o que ele chamou de cells no tratado Micrographia de 1665, ao observar tecidos de plantas sob microscopia. Ele achou as estruturas parecidas com favos de uma colméia de abelhas, daí o nome. Hoje sabe-se que todos os seres vivos são formados por uma (unicelulares) ou muitas (pluricelulares) unidades celulares (teoria celular, enunciada pela primeira vez em 1839 por Schleiden e Schwann). A célula é formada por uma membrana que envolve um gel chamado citoplasma e uma estrutura denominada núcleo onde estão os genes. , assombrosos 37 trilhões delas, mais ou menos. Como elas conseguem se manter coesas num organismo que permanece unitário e percebe-se como indivíduo por décadas? Esse é mais um dos milagres da natureza, um dos milagres reais que existem e que nem percebemos. Uma das coisas mais surpreendentes sobre os organismos vivos é que essa quantidade enorme de células não permanece estática. Elas têm vidas bem mais curtas do que o organismo em que vivem, e por isso precisam se multiplicar ao longo de nossas vidas.

Nossas células sanguíneas são renovadas a cada 120 dias, em média. A nossa pele se renova a cada 30-40 dias em adultos (isso varia de 2 semanas em bebês a dois meses em idosos). O epitélio do intestino é mais rápido ainda e se renova a cada 4-5 dias em média! Mesmo os ossos passam por esse processo: no primeiro ano de vida, nós “trocamos” nosso esqueleto inteiro, e a renovação dos ossos em adultos é de cerca de 10% ao ano. Neurônios são uma das pouquíssimas classes de células que não se renovam em mamíferos. Na verdade, durante o crescimento, nós perdemos uma certa quantidade de neurônios em algumas áreas do cérebro (ainda existem dúvidas se parte deles é renovada ou não).

Isso significa que, apesar de mantermos nossa individualidade física e psíquica, na prática a cada dez anos, mais ou menos, nós “trocamos” de corpo (exceto os neurônios). Essa velocidade de renovação é maior na infância e diminui nos idosos. Nossas células, então, estão em constante estado de divisão e multiplicação, mesmo em adultos. Estima-se que, numa vida humana, ocorram algo em torno de 10 quatrilhões de divisões celulares, mais de 40 vezes mais que o número de estrelas na Via Láctea! Isso é impressionante , e explica a principal fonte de mutações genéticas em nossas células: o próprio mecanismo de divisão celular.

Quando uma célula se divide, tem que copiar todo o seu material genético Material genético é aquilo que existe dentro de uma célula que carrega a informação sobre as características de um determinado ser vivo. A herança de caracteres dos pais para os filhos é conhecida desde tempos imemoriais, porém apenas nos anos 1850-60 o cientista tcheco Gregor Mendel estudou detalhadamente os padrões de herança e cogitou que elementos hipotéticos (que foram chamados de “genes” apenas em 1905 por Johannsen) eram os responsáveis pela herança. A natureza destes genes permaneceu obscura até a demonstração que o ácido desoxiribonucléico (ADN ou DNA) era a molécula responsável pela herança genética nos anos 40-50. . Não é pouca coisa. O genoma Genoma: material genético de um organismo. Inclui todos os genes, as sequências de DNA não codificante (que não são genes) e também o material genético em organelas como as mitocôndrias. Por exemplo, os 22 mil genes humanos constituem menos de 2% do genoma humano. humano é composto de 22 mil genes Gene (gr gonos = geração, semente): trecho de DNA que codifica uma molécula (proteína) com uma função. Correspondem às unidades de herança hipotetizadas por Mendel e denominadas de genes pelo botânico dinamarquês Johannsen em 1905. Constitui uma minoria do DNA de uma célula. A maior parte do DNA não codifica proteínas e, portanto, não faz parte de genes. A expressão “um gene, uma proteína” resume o dogma central da biologia, de que a informação genética é transferida (codificada) do DNA para o RNA e deste para uma proteína espalhados em 3,3 bilhões de pares de bases do DNA DNA (ou ADN = ácido desoxiribonucléico): molécula orgânica complexa, o DNA é um polímero, uma cadeia formada da união de moléculas mais simples. Ele é formado de 4 tipos de moléculas: adenina, citosina, guanina e timina, as quais são nucleotídeos, os monômeros (partes individuais que compõem, em conjunto, um polímero) do DNA. Cada molécula de DNA é formada pela união de duas longas fitas de nucleotídeos, que se enrolam em espiral. A posição dos nucleotídeos ao longo da fita de DNA não é casual, ela forma um código, chamado de código genético, que armazena as informações necessárias para a produção de todas as proteínas de uma célula. Na verdade, o DNA contido em cada célula carrega as informações necessárias para reproduzir todo o organismo. (a molécula do DNA é dividida em “tijolos” básicos chamados bases, que são copiadas uma a uma na divisão celular). O processo de cópia do material genético celular é um dos fenômenos biológicos mais bem controlados que existem. Afinal, assegurar o mínimo de mutações possíveis é crítico para nossa sobrevivência. Mesmo assim, com todos os mecanismos de proteção que existem nas células, estima-se que ocorram 0,1 a 1 mutação Mutação (lat mutatio = mudança): em biologia, alterações do material genético celular. Podem ser classificadas de diversas formas. Por exemplo, mutações silenciosas não mudam a expressão do código genético e, portanto, não tem nenhuma repercussão na estrutura e metabolismo celular. Mutações pontuais ocorrem pela alteração de um único nucleotídeo da cadeia, enquanto em deleções uma parte da cadeia é perdida e em inserções um trecho de nucleotídeos é adicionado. em cada replicação de genoma. Isso equivale a pelo menos 1 quatrilhão de mutações genéticas num organismo humano ao longo de uma vida! A grande maioria destas mutações, no entanto, não vai causar câncer.

Figura: o cariótipo (conjunto de cromossomos) do ser humano. Créditos National Human Genome Research Institute (domínio público), via Wikimedia Commons.

A maioria das mutações não vai causar absolutamente nada, pois o código genético é muito redundante. Além disso, a maioria dos pares de bases do DNA humano não codifica nenhum gene. Então, apenas uma pequena fração das mutações vai ter impacto na fisiologia celular. Mesmo assim, nem sempre esse impacto vai causar alterações do crescimento celular. Apenas as mutações que modificam o modo como as células controlam o crescimento celular (ciclo celular) tem capacidade de causar câncer. Estima-se que cerca de 1000 genes controlam o ciclo celular, então apenas uma pequena fração das mutações genéticas que realmente afetam as células terá o potencial de alterar o ciclo celular e causar câncer.

Figura: lesão da sequência de bases do DNA pela radiação UV da luz solar. A exposição desprotegida aos raios UV do sol é uma das mais importantes causas de câncer de pele. Créditos Mouagip (derivação) DNA_UV_mutation.gif: NASA/David Herring. Esta imagem foi criada com Adobe Illustrator. (DNA_UV_mutation.gif). Domínio público, via Wikimedia Commons.

É muito difícil estimar a quantidade de mutações genéticas que efetivamente teriam o potencial de causar câncer que ocorrem durante uma vida humana, mas esse número certamente é grande sob qualquer perspectiva, provavelmente da ordem de muitos milhões. Isso nos leva à atual teoria científica sobre a origem do câncer: ele é um subproduto da divisão celular normal que ocorre nos organismos vivos. Isso significa que não há uma causa real do câncer, ele ocorre casualmente, aleatoriamente. É como passar a vida toda jogando na loteria, as chances de ganhar são pequenas, mas eventualmente alguns “ganham” a loteria do câncer. Isso também nos leva a questionar porque o câncer não é muito mais frequente! Hoje em dia, a principal hipótese é que o sistema imunológico passa a vida toda “caçando” e destruindo células com potencial de causar câncer (células transformadas) em nosso organismo. Isso explica porque, recentemente, tratamentos modernos que usam o sistema imune do próprio organismo (imunoterapia) tem obtido grande sucesso.

Então, para resumir, o câncer não é uma doença única, é um grupo grande de doenças bem diferentes entre si, causadas por mutações genéticas que ocorrem naturalmente ao longo da vida de todas as pessoas. Algumas perguntas surgem. Porque a exposição a fatores do ambiente aumentam a chance de ter câncer? A resposta tem a ver com a teoria do câncer. Radiação UV do sol, produtos químicos, raios X e outras formas de radiação aumentam a chance de células terem mutações genéticas causando lesões do DNA. Uma dieta rica em carboidratos faz o organismo produzir muita insulina e a insulina estimula as células cancerígenas e aumenta sua sobrevivência ao sistema imunológico.

Isso leva à uma conclusão final: é possível reduzir muito a incidência de câncer reduzindo a exposição a fatores do ambiente como sol, fumo, álcool e carboidratos, porém é impossível reduzir a incidência do câncer a zero. Mas, então, o câncer sempre vai existir? Sempre é uma palavra forte, mas é razoável achar que, num horizonte de tempo que possamos vislumbrar, o câncer vai continuar existindo. No entanto, é possível sim reduzir muito sua incidência com cuidados simples e baratos, mas isso é assunto para outra postagem.

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